Narciso não morreu!
Data:15/03/2018 - Hora:08h31
Arquivo Pessoal
Em tempos de eleições vale a pena matutar.
Matutar sobre a política não tem contra-indicação, é inclusive muito recomendado, e para todas as idades. A política não deve ser tratada como um assunto proibido ou um tabu. Precisa ser matutada sim, e em todo lugar, senão tudo o que dissermos, tudo o que defendermos e tudo o que nos queixarmos não resultará em nada! E já que o lance é matutar, estive matutando recentemente sobre um tipo de eleitor e de candidato muito curioso, que anda ganhando projeção por aí: o narcisista. Tenho uma tese, obviamente, nada científica, talvez de inspiração mais filosófica, quem sabe, que o Narciso, aquele personagem da mitologia grega, o bonitão, o galã das teatrais tragédias, não morreu naquele fatídico episódio no lago.
Sei que a minha tese, a princípio, se parece muito mais com um furo de reportagem de um desses programas de fofocas, do que com uma interpretação séria sobre a nossa realidade política, mas peço encarecidamente que deem um crédito a ela, um pouquinho que seja.
Defendo a tese de que aquela história de que o Narciso morreu afogado e no local onde isso ocorreu nasceu uma flor, que mais tarde seria batizada com o seu nome, foi só uma desculpinha furada, contada para nos confundir. Ele não só não morreu, como sua doutrina, seus ensinamentos e suas crises de personalidade, um tanto egocêntricas, foram difundidas e estão muito bem vivas na cabeça e nas ações de muitos. O cara foi estratégico. Fez uma jogada de marketing sensacional com a sua suposta morte. Para dar impacto, se valeu de uma narrativa de fácil acesso, fluída e comovente, com lição de moral ao final. E, para dar credibilidade, tascou algumas ninfas e deuses no balaio. Taí, ingredientes bem equilibrados e misturados na dose certa. Dito e feito, ganhou fama e a aproveitou para conquistar seguidores e com eles espalhar suas sandices e rompantes pelo planeta.
Os narcisistas (os herdeiros de Narciso) estão por toda a parte, resistindo bravamente, se multiplicando pelas cidades e pelos campos e, como mencionei, fazendo pit stop também na política. Claro, o que já era de se esperar. Afinal, quer coisa melhor do que o gostinho do poder para um narcisista? Eles entregam o que for preciso em troca, tudo mesmo, salvo, é óbvio, a sua arrogância e soberba.
Mas quem são? Como vivem? Como se alimentam? Os narcisistas podem ser qualquer pessoa, um parlamentar, um postulante ao parlamento ou um postulante a qualquer outro cargo, um vizinho, um colega, um chefe de repartição ou de departamento, um amigo, eu mesmo ou você – por isso é preciso tomar cuidado, pois a pataquada se alastra rapidamente, é só baixar a guarda que a onda pega. É preciso ser vigilante acima de tudo. Eles não vivem escondidos, se adaptam em todos os ambientes, no real e no virtual, são muito apaixonados inclusive por esse último, na verdade, é quase uma doença. Não, não é quase, é uma doença, e a razão é muito simples, porque o ambiente virtual é o seu espelho, não que o outro também não possa ser, mas é no virtual que eles se sentem mais, digamos, à vontade.
É lá que eles se realizam, transbordando suas vaidades e percepções do entorno a partir de si mesmos, sem considerar as conseqüências do que dizem ou compartilham, sem considerar o que está para fora deles – “porque Narciso acha feio (e sem importância) o que não é espelho”. Sacou?! Quanto à alimentação, nada muito exótico. Facinho de adivinhar. Se estufam com os elogios alheios, com os aplausos que recebem, com as informações falsas que propagam para esconder suas ambições, com os olhares unânimes de aprovação e, principalmente, com a servidão e a subordinação daqueles que estão à sua volta.
Passemos aos casos práticos. Os narcisistas querem que a política e, conseqüentemente, os rumos do país, seja um reflexo de sua imagem e semelhança, logo, desandam a dar pitacos contraditórios.
Não se preocupam (ou se indignam) com a falta de luz, de água, de creches e de um ensino de excelência nas escolas da periferia, ao contrário, se preocupam apenas quando a ausência de algum serviço público afeta diretamente suas vidas; não se preocupam se no hospital público há filas ou não, se boa parte da população depende do SUS ou não, tampouco se o repasse de verbas está ocorrendo normalmente; não se preocupam se na universidade pública há vagas, bolsas de iniciação científica e auxílios moradia e alimentação suficientes; não se preocupam em refletir se determinada ação ou manobra do governo (independentemente de qual partido seja ou da conjuntura que tenha viabilizado a sua chegada ao poder) prejudicará os mais pobres. Preferem ignorar, e assim seguem, ignorando.
Continuando com mais alguns pitacos contraditórios, os narcisistas veem privilégios em toda parte, até nos benefícios sociais pagos às pessoas em situação de vulnerabilidade, mas jamais chamam de privilégio os penduricalhos acrescidos aos seus salários, mesmo já ganhando uma quantia mensal de dezenas e dezenas de vezes acima do salário mínimo nacional; veem injustiças em todo canto, mas jamais chamam de injustiça a criminalização da pobreza, os estigmas e as feridas ainda abertas do racismo, o tratamento desigual e violento ainda dispensado às mulheres, o fato de que as oportunidades nunca sobem o morro ou atingem os bairros mais afastados; e, por fim, veem corrupção em toda esquina, mas jamais chamam de corrupção o “pagamento por fora” que fazem a seus empregados, a sonegação de impostos que praticam, a acumulação de cargos públicos indevida, a carga horária de trabalho maquiada e a interferência, por meio de propina, nas decisões, votações e licitações no setor público. Ai os narcisistas, quanta pretensão! Espero que um dia consigam ver que há um mundo diferente daquele visto por meio do espelho em que se veneram e que depois disso estejam de fato abertos ao diálogo.
***___José Ricardo Menacho - Professor do Curso de Direito da Unemat/Cáceres
fonte: José Ricardo Menacho
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