Para novos amanheceres aqui ou acolá
Data:09/08/2017 - Hora:08h03
Arquivo Pessoal
[PRIMEIRO ATO]
Que cidade nós queremos? Que progresso desejamos? Para responder a esses questionamentos, entra ano e sai ano, muitas narrativas mirabolantes continuam aparecendo e nos sendo apresentadas, ou, numa etiqueta nada civilizada, empurradas goela abaixo; narrativas cujos diagnósticos são equivocados, mais conjunturais do que estruturais, e os resultados práticos, por consequência, não são muito visíveis. E digo a vocês, não sei se por ingenuidade nossa ou como um acalento psicológico que vamos criando, nós mesmos, às vezes, ou, na maioria das vezes, afiançamos àquelas narrativas que, como o canto da sereia, leva-nos ao afogamento. São tantas histórias da carochinha, tantos contos do vigário, tantos mitos idealizados, que já não estamos mais acreditando nem em nós mesmos, tampouco em nossas vocações e potencialidades. Tenho medo de nós nos esvaziarmos por completo, caso sigamos nesse ritmo, o que, adianto, será trágico, muito trágico!
Sou cacerense, ou melhor, sou um pantaneiro-cacerense, mais de título do que de prática, confesso. Moro em uma cidade bicentenária, fronteiriça, que, como muitas no Brasil, é riquíssima em traços arquitetônicos históricos e agraciada com uma fauna e flora bem plural. Do Rio Paraguai, margeando o perímetro urbano, à região da morraria, o que não faltam são causos e acasos para compartilhar. Sei que essas referências são bem óbvias, até porque, quase todo mundo meio que fala a mesma coisa de suas origens, exalta o que há de bom, o que há de inesquecível e imperdível, dá detalhes dos costumes e das tradições construídas ao longo dos anos, mas faço esse registro, dado à sua necessidade para esta discussão – afinal, é sempre válido num intercâmbio de ideias não deixarmos dúvidas quanto ao lugar de onde nos manifestamos. Assim, neste texto, coloco-me na condição de um filho falando de sua família, ou na condição de um morador falando de sua casa, a partir de uma leitura pessoal, íntima, feita de dentro para fora, pautada em meu próprio convívio.
Cresci ouvindo que o desenvolvimento só viria quando o colonhão fosse arrancado, quando os campos dessem lugar aos prédios, aos condomínios, às autoestradas, aos viadutos, às pontes e às indústrias. Cresci ouvindo que cidade que era cidade, dessas de peso, dessas de nome e sobrenome, dessas que
todos se lembram numa roda de conversas, tinha de ser planejada, com ruas e avenidas largas, com shoppings, com hipermercados abarrotados de novidades, com bairros “de grã-finos”, “de não tão grã-finos assim” e “de nada grã-finos”, e, claro, com aeroporto funcionando regularmente. Como não tinha outra coisa para acreditar, nem titubeava, ia acreditando no que me contavam. Cresci, portanto, pensando que o desenvolvimento brotava dessa mistura: cimento, concreto, tijolos, grana e consumo, muito consumo. Hoje, já com 28 anos no lombo, fico matutando: e se essa receita vingasse? E se fosse aplicada assim, tal como me convenciam, sem qualquer mediação, sem qualquer audiência popular, onde estaríamos? Sustentabilidade era uma preocupação?
Interessante que cresci sem ter acesso ao contraponto, à divergência. Diria inclusive que cresci sem muito estímulo para olhar e imaginar a cidade que eu mesmo pertenço. Cresci sem tomar conhecimento, nem pela imprensa local, nem pelos representantes políticos de então, nem pela escola, nem pelo círculo de amizades dos meus pais que eu também frequentava, de que aquela fórmula de desenvolvimento, batida, manjada, padronizada e interesseira, ventilada aos quatro cantos, era uma lenda, era um engodo, porque não alcançava a todos, não dava cabo das contradições e carências que, com frequência, tropeçávamos, e o pior, além de não alcançar a todos e não conseguir dar cabo do que precisava dar, trazia uma falsa sensação de progresso, cujos custos sociais e ambientais, eram (são) altíssimos – num paralelo, é como a fórmula genial que promete identificar o ouro dentro do lago, mas, ao mesmo tempo, corrói as pernas do garimpeiro e deixa seus braços pipocados de feridas.
Interessante também que cresci sem ouvir comentário algum sobre um desenvolvimento que partisse da emancipação das pessoas, da concretização rotineira dos direitos fundamentais, da desconcentração de renda, de um direito ao trabalho decente, de uma EDUCAÇÃO PÚBLICA forte, aberta, inspiradora e libertadora, do incentivo a uma formação político-comunitária, do combate ao trabalho escravo e à prostituição infantil, da consciência social de uma igualdade material, que alcançasse inclusive, proporcionalmente, os tributos. Cresci sem ouvir comentário algum sobre um desenvolvimento que partisse da construção de creches, de hospitais, de parques, de áreas de lazer para a meninada, de teatros para fomentar as artes cênicas no município, do incentivo à cultura, como bem material e imaterial indispensável à vida em comunidade. Cresci sem ouvir
comentário algum sobre um desenvolvimento que partisse do reconhecimento das diferenças, do enfrentamento às desigualdades étnico-raciais, da desconstrução das discriminações por gênero e orientação sexual, de um projeto de país coerente, popular, justo, que se colocasse frente à selvageria das pretensões dominantes do mercado. Cresci sem ouvir comentário algum sobre um desenvolvimento que partisse de um empoderamento político dos jovens, encabeçado, diga-se de passagem, pelos próprios representantes políticos em exercício, de um pacto pela diminuição da violência no trânsito, de um pacto pela preservação do nosso rio, de nossas matas ciliares, de nossas praias, de um pacto pela coleta seletiva do lixo e pela sua reciclagem.
Que cidade nós queremos? Que progresso desejamos? Sugiro que, antes de lançarmos mão de narrativas mirabolantes, antes de aplicarmos soluções enlatadas, segundo cartilhas desafinadas com os nossos contextos, precisamos nos preparar para essa empreitada, precisamos preparar nossos jovens, nossas crianças, nossos idosos, precisamos preparar os serviços que prestamos, seja no espaço público, seja no espaço privado, precisamos preparar nossas inteligências. E como começaríamos todas essas preparações? Começaríamos com um retorno reflexivo às nossas potencialidades, às nossas vocações, ao que somos capazes de fazer, ao que nos identifica, às nossas ruas, às nossas praças, aos nossos casarões, às nossas autenticidades, às nossas cores! [CONTINUA]
José Ricardo Menacho: Professor do Curso de Direito da Unemat/Cáceres, autor do livro “O Plural do diverso”.
fonte: José Ricardo Menacho
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